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Depois de me agredir por 30 anos, no Natal, minha mãe pediu perdão e morreu.

Publicada em 28/12/21 às 09:54h - 164 visualizações

por AÇAÍ VIP


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 (Foto: AÇAÍ VIP)



Naomi ouviu o primeiro


Naomi ouviu o primeiro "te amo" da mãe na véspera do Natal de 2017 (Foto: Arquivo pessoal)


“Sou filha de uma mulher negra-índia-baiana. Minha mãe, Elisabete, saiu de Salvador sozinha em busca de trabalho e, ao chegar em São Paulo, conheceu meu pai. Ainda muito nova, eles começaram a se relacionar e logo ela engravidou do seu primeiro filho, Marcos. Muito jovem e sem emprego, mamãe não teve o apoio esperado do meu pai e acabou dando meu irmão a uma família adotiva.

Depois, começou a trabalhar como ajudante e como faxineira num salão de beleza. Mas logo se rendeu novamente aos encantos do meu pai e engravidou de mim. Mais uma vez, ele a fez escolher entre abortar ou me entregar para adoção. Cansada de toda essa humilhação, ela decidiu seguir a gestação e se separou dele por definitivo – ainda que tivesse perdido o emprego. Foi então pedir abrigo à minha futura madrinha, na pensão da minha avó adotiva, dona Adelina, onde passou a trabalhar.

Até os meus sete anos tive tudo que uma criança deseja. Estudei nas melhores escolas, ganhava os brinquedos mais caros. Minha avó fazia todas as minhas vontades.
Até que ela adoeceu e seus filhos venderam a pensão. Com o dinheiro que minha avó havia depositado numa conta poupança que fez para garantir meus estudos, mamãe comprou uma casa numa comunidade de São Vicente, no litoral de São Paulo, onde morávamos. Em seguida, vovó Adelina morreu. E minha vida me vida mudou -- mamãe casou de novo, mudamos para uma casa maior na mesma periferia, nasceu minha irmã, Amanda.

Desde muito pequena, sabia que eu era um menino diferente dos demais. Sempre gostei de brincar de bonecas, queria usar as roupas e as sandálias da minha mãe e e já me sentia atraída pelos meninos. Com 10 anos, comecei me comportar como mulher, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo comigo. Quando tinha 12, nasceu meu irmão Jhonatam e minha mãe se separou do meu padrasto, que tinha sérios problemas com bebida e drogas e batia nela frequentemente – eu morria de medo dele.





Nessa época, minha brincadeira preferida era imitar a Xuxa. Não tínhamos aparelho de som em casa, mas não perdia um programa da minha eterna rainha, sabia todas as coreografias. Eu não tinha malícia alguma, mas chamava a atenção de todos. Foi nesse período também que fui abusada sexualmente pela primeira vez, na saída da escola – por um homem branco cujo rosto nunca esqueci.

Traumatizada, passei a me esconder dentro de mim. Foi quando conheci Ricardo, um amigo da minha mãe que era gay e se montava de mulher durante a noite para ir às boates. Ele tinha uma loja de artigos esotéricos no shopping da minha cidade e me deu um emprego. Essa convivência me rendeu muitos ensinamentos do universo gay. E, ainda adolescente, vivi minha primeira paixão. Alexandre era loiro, tinha olhos azuis e era o menino mais lindo da minha rua e do meu bairro. Discretamente, comecei a me insinuar para ele e, aos poucos, fomos criando um laço de amizade, até que, meses depois, aconteceu o meu primeiro beijo.

Ficávamos na casa dele, até que um dia ele me chamou para sair e fomos flagrados por três meninos da nossa rua que espalharam a fofoca. A essa altura eu já estava harmonizada ao extremo, mas minha mãe vivia ocupada e mal reparava em mim. Até que na noite de Natal, do ano de 1991, minha mãe foi abordada por uns caras da rua que haviam tentado abusar de mim e ficou sabendo de tudo.


Quando chegou em casa, me chamou na cozinha e me deu uma surra. Minha pele ficou com cortes em carne viva. Não contente, me segurando pelos cabelos, ela esquentou uma colher no fogão e, pisando no meu pescoço, queimou todo o lado direito do meu rosto, até arrancar a carne dele. Gritando, pedia a Deus que me levasse. Friamente, ela disse: ‘Se for para ter um filho ‘viado’ que seja marcado’. Começava ali minha penitência.


Mamãe cortou o meu cabelo e me matriculou em uma escola para crianças portadoras de deficiência especiais achando que eu estava doida. Fugi então para a casa da minha madrinha, que me deu guarita por alguns meses. Ela quis processar minha mãe, mas não deixei. Eu amava incondicionalmente aquela mulher que me gerou. Meu sentimento era maior do que toda aquela dor.

O tempo passou e acabei voltando a morar na casa da mamãe, mas era proibida de sair, tinha que cuidar dos meus irmãos e da casa. Nessa época, meu padrasto havia sofrido um acidente e estava afastado do serviço. E, um dia, no portão, me agarrou por de trás e me obrigou a fazer sexo oral nele. Ao término, disse que se eu contasse para alguém ele tocaria fogo na nossa casa e mataria todos nós. Durante o ano seguinte, esse cara me beijava na boca escondido, abusava sexualmente de mim quase toda semana. Até que um dia, mesmo com medo e sob fortes ameaças, não aguentei e contei tudo para a minha madrinha, que de imediato contou para minha mãe. Novamente fui espancada, sob gritos de ‘mentirosa’. Até que minha madrinha armou um flagra e ela se separou.


No fim daquele ano, com ela já casada e grávida de novo, comecei a frequentar o candomblé e finalmente me encontrei. Ainda tinha 13 anos quando voltei a tomar hormônios. Usava roupas de homem em casa, mas, quando cruzava o portão, trocava tudo.

Primeira foto de mãe e filha juntas, no Natal de 2017 (Foto: Arquivo pessoal)

Primeira foto de mãe e filha juntas, no Natal de 2017 (Foto: Arquivo pessoal)

No Carnaval seguinte, decidi me montar de mulher e sair num bloco da cidade. Ao chegar em casa, continuei montada até minha mãe mandar eu me trocar. Pela primeira vez, eu a enfrentei. Disse que era assim que eu iria andar dali em diante. Chocada pela minha petulância, mamãe veio pra cima de mim e não deixei que ela me agredisse novamente. Em meio a lágrimas, disse que aquela era eu, tirei o bustiê e mostrei os meus seios cheios de hormônios. Apanhei muito naquela noite, mas dessa vez não verti uma única lágrima. Enfim, estava liberta. Ou quase.

Dois meses depois, passei 15 dias fazendo obrigação no terreiro e dormindo lá e recebi um recado da minha mãe. Fui até a casa dela e, chegando lá, ela disse para eu pegar minhas coisas e seguir a minha vida. Disse que estava indo morar longe por vergonha de mim, por sentir nojo da pessoa que eu havia me tornado. ‘Mamãe, como assim? Para onde eu vou?’ E ela me respondeu: ‘Junte-se aos seus, junte-se à sua corja’.

"Meu padrasto abusava sexualmente de mim quase toda semana""

Fui acolhida por uma irmã de santo, também uma mulher trans, que me levou a casa de uma outra trans, a Thais. E só ali conheci a dor que é ser uma mulher como eu no Brasil. Para comer e me sustentar, fui obrigada a me prostituir. Meu primeiro programa foi em troca de um maço de cigarro e cinco reais. Os anos se seguiram assim. Tinha 15 anos quando conheci o crack, a cocaína e a maconha. Morei na rua com usuários de drogas, apanhei de polícia, fui presa, comi resto de comida do lixo, virei pedinte nas ruas.

Sem ter para onde ir, vivia na porta das boates vendo as artistas da noite entrando para fazerem seus shows. Ali, esquecia do mundo, da dor, da saudade que sentia da família.  Até um dia que, uma mulher lindíssima, alta, cabelos negros, longos e cacheados, um corpo escultural que descia de um taxi me olhou e disse: ‘Que negra linda’! Ela perguntou o meu nome. ‘Watusy’, respondi. Ela me levou para a casa de outra mulher trans da mesma religião que eu, Tila, que decidiu me agenciar.

Me iniciei então no candomblé e ganhei de Tila minha primeira viagem para Europa. Morei por nove meses na Itália, depois na Suíça e também na Alemanha. Em 1999, voltei ao Brasil e, no ano seguinte, morei seis meses na Argentina. E durante todo esse tempo não vi mais minha mãe e mal sabia notícias dela e dos meus irmãos. Nessa época não tinha redes sociais. Mal tinha um celular.


Em 2015, voltei a morar na Europa e, dessa vez, morei na Espanha, França e Itália. Um belo dia, já cheio de saudade e curiosidade para saber como ela estava, criei coragem e fui buscar notícias. Nos reencontramos depois de sete anos e, mais uma vez, fui rejeitada. Ela não me abraçou, não me acolheu, não me abençoou, não disse palavras doces. Pedi para ver meus irmãos, mas ela não deixou. Então, fiz um trato com minha tia, que todo final de ano eu mandaria um presente para os meus irmãos e evitaria de ver minha mãe, que tinha muita aversão a mim.

Em 2007, me tornei mãe de santo e abri meu primeiro terreiro de candomblé na cidade de São Vicente. Segui minha vida, sem mais saber nenhuma notícia sobre a minha mãe.

Anos se passaram, mais de 15 anos, até que um dia minha irmã mais nova resolveu quebrar esse gelo e me procurar. Voltamos a nos comunicar uma vez ao ano. Depois passamos a nos falar mensalmente, até ela vir me visitar em 2010. Fiquei tão feliz em recebê-la... Morava já na minha casa de candomblé.

"Na hora de ir embora, ela me chamou. ‘Filha, perdoa a mãe? Eu te amo tanto’, disse. Desabei a chorar em seus braços"

 

Era 19 de dezembro de 2017, quando uma entidade espiritual disse para eu visitar minha mãe antes ainda do ano acabar ‘para eu não chorar depois’. Quatro dias depois, cheguei em sua casa com uma ceia de Natal para toda a família. Quando me viu, ela me abraçou. Rimos e choramos juntas. Tiramos a primeira foto juntas da nossa vida. Depois, tiramos outras e outras.  Na hora de ir embora, ela me chamou. ‘Filha, perdoa a mãe? Eu te amo tanto’, disse. Desabei a chorar em seus braços. Ela nunca tinha dito que me amava, e ainda me chamou de filha.


Esperei mais de 30 anos por este abraço maternal. Disse que a perdoava e lhe pedi perdão por todas as vezes que a fiz chorar. Nosso abraço de mãe e filha pareceu durar uma eternidade. E foi tão bom... Prometi a ela que voltaria dias depois, no ano novo, para romper a entrada do ano com ela. Mamãe me acompanhou até o portão de casa e, pela primeira vez, me abençoou. ‘Que Deus te acompanhe sempre, minha filha! Eu te amo’, disse.

Naquela noite, 24 de dezembro de 2017, véspera de Natal, minha mãe dormiu e não acordou mais. Ela enfartou, era diabética e já tinha tido quatro AVCs antes. Agradeço a Deus e aos meus orixás todos os dias por ter me dado a dádiva de me despedir da minha mãe, por ter tido a oportunidade de me sentir amada por ela. Desde então, todas as noites de Natal passaram a ser diferentes e mágicas para mim. Elas me trazem a lembrança da minha mãe.

Dali em diante, passo todos os natais com pessoas em situação de rua. Levo comida, acolhimento e janto com eles. Já estive naquele lugar e sei bem a dor que é se sentir abandonada e rejeitada. Olhar para o lado e não receber um abraço na noite de Natal. Me sinto muito fortalecida ajudando aos que mais necessitam de amor, alimento e compaixão numa noite como essa, quando a maioria das pessoas está reunida no aconchego dos seus lares, rodeados dos seus familiares e presentes.”
















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